Ser vítima de olhares reprovativos ao passar na rua por conta da sua aparência não feminina é algo ainda bastante comum nos dias atuais, imagine na Costa Rica da década de 20. Na época, Chavela Vargas era uma mulher jovem, que exalava uma certa androginia. Na verdade, a cantora não manifestava a feminilidade esperada para uma menina. Até quando era conhecida por seu nome de batismo, Isabel Vargas Lizano, já sofria preconceito por ser quem é.
Os julgamentos a acompanharam mesmo depois de ter descoberto o México como seu lar. Chavela ainda teve que passar por algumas adaptações estéticas, usando saltos e vestidos em seus primeiros anos no país, em uma tentativa de se parecer com as cantoras da época. Mas não durou muito, logo voltou ao seu estilo anterior, no entanto, com algumas mudanças. Passou a usar ponchos, sua marca registrada, junto com as calças largas. Mas a liberdade por ser quem queria ser, teve um preço a ser pago, assim como o alcoolismo decorrente da sua vida boemia.
“Lo supe siempre. No hay nadie que aguante la libertad ajena. A nadie le gusta vivir con una persona libre. Se eres libre, ese es el precio que tienes que pagar: la soledad”
Como Chavela escolheu por ser livre em outro país que não era tão diferente culturalmente da Costa Rica, ela acabou sofrendo também muito preconceito, ao mesmo tempo em que tinha seu principal instrumento reconhecido, que era a voz. Somente com o violão, a cantora construiu um estilo antes jamais visto na música ranchera cantada por mulheres. Ela colocava o seu sofrimento na música, assim como sua grande e eterna amiga, Frida Kahlo, fazia com as pinturas em tela.
Dentro do forte patriarcado, ela se fortaleceu incorporando a figura de um homem bêbado dentro do ritmo popular, já que de fato passava a maior parte do tempo ébria nos palcos. Mas ao mesmo tempo em que ganhava forças no meio musical por seu estilo diferente, ela também sofria por ser quem era, uma mulher lésbica. O sofrimento foi tanto, que apesar de não ser assumida publicamente por conta da sociedade homofóbica, ela escrevia suas inquietudes nas letras. Era uma mulher falando e descrevendo outra mulher em suas potentes composições.
“Quiero ser libre vivir mi vida con quien yo quiera”
Mesmo que tenha se relacionado com inúmeras mulheres, que na época o público já especulava e sabia de alguns casos, o rótulo de mulher lésbica não era expressado, principalmente por conta da palavra que assustava (ainda hoje) muitas pessoas. Foi só quando completou seus 80 anos de idade, ao perceber que tinha uma popularidade em todo o mundo e que a sociedade já podia estar acostumada com pessoas LGBT no mundo da música, ela assumiu sua homossexualidade. O que também não era segredo, ainda mais por não exaltar feminilidade, o que é bastante associado a orientação sexual.
Pode-se dizer que Chavela teve dois importantes momentos em sua carreira. O início, na década de 30, é claro e a segunda parte, depois do hiato, nos anos 90. No primeiro momento, ela estava iniciando a boemia, o que depois se converteu em alcoolismo. Há relatos de que teve shows em que chegava a cair de tão alcoolizada. No segundo momento, bem mais madura e mais velha, a cantora só bebia água nos palcos, justamente por que já tinha a consciência que precisava cuidar de suas cordas vocais que de tão potente, ainda funcionavam e encantavam muitas pessoas, entre elas, artistas consagrados (Almodóvar, um dos principais exemplos) que ajudaram no retorno de Chavela aos palcos. Fala-se também do seu relacionamento com Alicia Pérez Duarte, que a ajudou a sair do vício. Tudo isso, também se pode ver no documentário Chavela, de Catherine Gund e Daresha Kyi.
“Soy lesbiana, yo nunca me he acostado com um señor. Nunca. Fíjate qué pureza. Yo no tengo de qué avergonzarme. Mis dioses me hicieron así”
Depois desses breves relatos, já muitas vezes escrito sobre essa cantora que de certa forma não teve seu reconhecimento merecido, há que exaltar suas músicas. São muitas que tocam o coração, juntamente com o tom cantado por ela, que levava suas dores ao palco. La Llorona, Paloma Negra, No Volveré, Si No Te Vas, En El Último Trago, Cruz de Olvido, Que Te Vaya Bonito e a potente Macorina. Esta última é um hino feminista de época. Já que trata da história de uma das mulheres mais importantes que contribuiu na busca por direitos às mulheres.
Macorina foi um poema pelo escritor Alfonso Camín sobre María Calvo Nodarse, La Macorina, que foi uma mulher precursora na luta feminista. Assim como Chavela, ela abandonou sua região de origem ainda na adolescência. Teve um começo difícil, tento que abdicar de seu romance e de seu corpo para o mundo da prostituição. No entanto, também foi a primeira mulher a dirigir um carro em Cuba e a conseguir a carteira de motorista.
“Macorina te voy a llevar conmigo alrededor del mundo. Vas a recorrer de mi mano muchos mares y tierras lejanas. Se lo dije así y ella sonrió. Quién sabe si en ese momento me había creído, seguro que no, pero vivió el tiempo suficiente como para darse cuenta de que cumplí mi promesa. Cuando ella murió, en 1977, ya mi Macorina había ido y venido alrededor del mundo”
A música Macorina começa justamente com um impacto por ser uma canção bastante erótica cantada por uma mulher a outra. No entanto, ela traz justamente o fato histórico que foi vivido por María Calvo, suas mãos ao volante, representando todas as mulheres cubanas, a sensação de pilotar um carro pela primeira vez. Além disso, as mãos de Macorina também eram conhecidas por amigos próximos como “mãos que curavam”, como uma espécie terapia energética. No entanto, na música, os vários sentidos que a primeira estrofe expressava, foram apenas voltados para o erotismo, já que Macorina foi bastante elogiada por sua beleza nas artes em gerais. É tanto, que o poema de Alfonso foi imortalizado com a música de Chavela.
Apesar de Macorina ser um hino de liberdade de inúmeras formas, toda a discografia de Chavela, com 80 discos, foi bastante intensa e expressava o feminismo naquele estilo bastante tradicional mexicano. Mesmo com o hiato de pouco mais de 10 anos em sua carreira, Chavela teve inúmeras vivências, afinal, começou a cantar nas ruas quando chegou ao México, ainda na adolescência. Foi somente aos 30 anos de idade que gravou seu primeiro disco. Os anos de solidão lhe renderam inúmeras composições e forças no momento da cantoria em suas apresentações.
“Yo canto para todas las mujeres del mundo, para las madres, las hijas, las hermanas, las esposas y las amantes”
A vida de Chavela foi um mar de emoções. Cada ponto da sua história, tanto musical como pessoal é um ponto que pode ser relatado, desde o preconceito sofrido por sua sexualidade e por quebrar os padrões de gêneros, como também suas amizades e reconhecimentos no campo artístico, a exemplo do envolvimento com Frida, também sobre seus relacionamentos com mulheres da época que eram famosas e muitas até mesmo casadas, como também falar sobre seu período obscuro dentro da carreira que envolvia também o campo pessoal, já que o alcoolismo a tirou dos palcos. Chavela foi uma grande mulher. Ela faleceu em 2012, aos 93 anos de idade, no México, o país que escolheu nascer de novo, viver e morrer.
texto escrito por Ananda Omati.
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