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Foto do escritorEquipe Malamanhadas

Histórias que só se contam depois: a vida de mulheres anônimas


*contém relatos de violência sexual

1.

Uma senhora de estatura baixa, eu vou chamá-la de Maria. Magrinha, negra de pele clara. Alguns a diriam parda. Cabelos pretos, na altura do ombro, alisados quimicamente. Óculos. Roupas de algodão de cores claras. O rosto é sério, firme. Os traços e rugas são bem marcadas durante o decorrer do rosto e conta toda sua história sem sorrir ou chorar. Não chorou nenhuma vez enquanto falou. Os olhos por sua vez eram menos determinados. Teimavam em marejar vez ou outra. 53 anos, casada. Dois filhos.

Casou-se nova, o marido também. Aí começa a dizer que o marido a empurrou algumas vezes, uma vez a derrubou no chão. Também já ameaçou, mas não faria nada, ela sabe. Diz aos vizinhos da rua e amigos que ela Maria, é só pra casa mesmo, Ele não a vê mais como antes. 

Só que todo mundo sabe que o marido de Maria a trai com a vizinha da frente, mas ela mesma fala que ainda duvida. Nunca viu, e não tem como saber com certeza. Mas tem algo errado, ela sabe. Ela sabe que sabe, ou pelo menos eu acho que sei.  Maria conta que das últimas poucas vezes que fizeram sexo, ela não queria. Mas era obrigação dela como esposa, não é?

A irmã de Maria xinga o cunhado de todos os nomes. Diz que ela é muito abestada, já tinha que ter era se separado. E ela pensa. Pensa que até quer se separar mas tem medo. O que as amigas da igreja vão dizer? Tem na bíblia. A mulher deveria ser fiel ao seu marido. Fiel ao casamento. Como trair seu casamento? Como abandonar seus votos com Deus? E será que mesmo esse Deus que a iria querer lá? E como iria viver só?

O único bem que possuem é uma casa e um carro. A casa está no nome de um dos filhos. E os filhos. Os filhos, ela conta, e nessa hora parece mesmo que vai ruir,  morreram num acidente há alguns anos. E essas são histórias que só se contam depois. 

Maria perdeu dois filhos num acidente, e depois disse que nunca mais teve paz, e as histórias que contou se seguiram. Agora as questões burocráticas, jurídicas, o-como-proceder. A casa, o carro, informações. Ah, semana que vêm, dona Maria, vai ter um encontro das mulheres.

Maria mantém o rosto firme mas o olhar é triste depois.  Há possibilidades aí dona Maria. Há processos que vão além dos jurídicos. Há companhias melhores aos olhos talvez inclusive de um Deus.


2.

É um telefone tocando e é uma voz ofegante de mulher. Parece quase chorosa, angustiada. É enfermeira de uma maternidade pública. Pede informações. Pergunta o que uma profissional de saúde deve fazer. Não sabe ainda. Diz que chegou até ela uma mulher grávida de oito meses vítima do ex-companheiro. A mulher grávida levou sete pauladas na barriga. Sete. Na barriga. O bebê sobreviveu miraculosamente. A mãe na UTI. A enfermeira mal respira enquanto pergunta o que fazer se o agressor aparecer, e como denunciar, ela pode denunciar? Quem pode denunciar? Pergunta, angustiada. Os encaminhamentos são feitos. Mas parece que as vezes dói demais ser profissional do cuidado.


 3.

Ana é uma mulher alta, gorda, negra de pele retinta, e dentes grandes que se fazem notar toda vez que sorri. Ana era dona de uma bar no bairro em que morava, e tirava de lá sua renda. Lá morou por mais dez anos. Um dia, num sábado, assim que o bar abriu depois do almoço, um rapaz, cliente do bar, se levantou da mesa e entrou dentro da sua casa. Ana é uma mulher alta, forte, eu já disse, mas ali não conseguiu se soltar. Se viu presa num quarto onde ele a violentou ali mesmo no chão. Depois disso, o bar de Ana fechou. Os homens da região por algum motivo não iam mais. Ana sabia o que vizinhança achava, que achavam que estava mentindo. Como a mulher falante, sorridente de seios fartos estaria denunciando agora um de seus clientes de bar? Certamente ela facilitou. Certamente se arrependeu depois. Ana teve que se mudar com o filho, e reinventar o viver em outro lugar. Mas Ana curiosamente não tem mais medo. Já se passaram alguns meses do ocorrido, mas quando fala do assunto, olha direto nos olhos, tem o torso ereto e  fala  naturalmente, sem atravessamentos, sem poréns. Ana só quer agora se reestabelecer. Fazer um curso de salgados e se virar pra criar o filho de 11 anos e manter a si mesma. E manter a si mesma.

 Contos da vida real

Essas são histórias de mulheres que estão ou estiveram em situação de violência psicológica, física e sexual. Fico a imaginá-las e imaginar também as pessoas que as encontram na rua, se sequer suspeitam de suas dores passadas, e presentes.

 Conheci uma pequena parte de suas vidas infinitas durante minha experiência no estágio no Centro de Referência Esperança Garcia em Teresina.

O centro fornece acolhimento psicossocial e jurídico, com acesso a atividades em grupos reflexivos, terapias integrativas, e oficinas períodicas. Sendo um dos eixo das políticas públicas da rede de atendimento a mulheres em situação de violência, o espaço proporciona atendimento a mulheres para o resgate de sua cidadania e humanidades.

Todos os casos são reais, muito reais, ainda que com pequenas alterações.


texto escrito por Deborah Falconete.

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