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Ei, branco! Ei, branca! Precisamos falar sobre nossa branquitude

Atualizado: 21 de mai. de 2020

E o que é branquitude? Lourenço Cardoso dá o seguinte conceito “a branquitude é um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos, objetivo, isto é, materiais palpáveis que colaboram para construção social e reprodução do preconceito racial, discriminação racial ‘injusta’ e do racismo”.

Lourenço escreveu também que “quando se trata da ideia do significado da branquitude, prepondera o pensamento de que o branco não possui raça ou etnia. O branco não se encaixaria nos grupos, muitas vezes, denominados como minoria racial, étnica ou nacional”. No caso brasileiro, mesmo a população negra sendo maioria da população em termos numéricos, as pessoas brancas são a face pública das instituições mais importantes do País. Estamos falando de políticos, artistas, escritores, jornalistas, intelectuais, professores universitários etc. Nesse sentido, a branquitude é representada e ocupa lugares como pretensa maioria. Brancos e brancas pertencem a um fenótipo civilizatório, apresentando “uma continuidade moral, intelectual e estética”, segundo Lia Vainer Schucman.

Assim, a branquitude, mesmo nos debates raciais mais recentes no meio acadêmico ou nas discussões mais triviais do dia-a-dia, como o BBB, parece ocupar um local invisível. As pessoas brancas têm passe livre para não falar sobre o seu lugar de fala, mesmo ocupando o lugar da branquitude. Quem tem local de fala são os outros. Assim, parece que nós, brancos, não temos raça. Somos uma espécie de sujeito normativo que não deve, portanto, se questionar e questionar seus pares.

Um exemplo besta disso é a indignação de algumas pessoas brancas com as piadas do Twitter que relacionavam as participantes Marcela, Ivy e Gizelly do BBB20 ao nazismo, à Ku Klux Klan e a ideias de supremacia branca. A indignação, em parte, tem razão. Lourenço Cardoso nos aponta a necessidade de reconhecer a branquitude acrítica, como uma branquitude que defende publicamente que brancos são superiores a negros, e a branquitude crítica, como aquela que desaprova publicamente o racismo.

Nesse sentido, as três mulheres brancas mencionadas, por outros posicionamentos demonstrados no reality, parecem mais compor o grupo da branquitude crítica, como pessoas brancas capazes de desaprovar publicamente o racismo, o nazismo ou a ideia de que brancos são seres superiores.

Mas Lourenço chama atenção para o seguinte aspecto: “nem sempre aquilo que é aprovado publicamente é ratificado no espaço privado. Por vezes, é desmentido, ironizado, minimizado, principalmente, quando se trata de questões referentes ao conflito racial brasileiro”. E então, ciente do fenômeno complexo que é a dissimulação do preconceito racial e do racismo por parte dos brancos em nossa sociedade, Lourenço somente considera branquitude crítica aquela que desaprova o racismo publicamente

Apesar da indignação com a mácula na imagem das participantes brancas, não observei ninguém se questionando sobre o porquê de Marcela ter ganhado mais de um milhão de reais com seu curso sobre sexualidade, mesmo após a participante ter sido racista e revelar inúmeras incoerências no feminismo que defendia. Ao invés de desaprovação pública, reconhecimento. Ao invés de cobranças de implicações na luta antirracista, a “sister” já estava milionária, recompensada com quase o mesmo valor do prêmio do reality. Marcela, além de divulgar vídeos chorando após sair do reality, ao ser interpelada sobre o racismo, disse “não é meu local de fala, preciso que me apontem para eu me desculpar”.

No mesmo sentido, Ivy e Gizelly ganharam milhões de seguidores nas redes sociais e hoje estão ganhando alguns milhares de reais com propagandas. No caso específico de Gizelly, mesmo após ser barrada para cargo nacional na Associação Brasileira de Advogados Criminais (ABRACRIM) por agência da Comissão de Igualdade Racial da Associação, que apontou as atitudes racistas da participante, isso foi compreendido por muitos associados como “inveja da beleza” de Gizelly. Na rede social, a “sister” se posicionou afirmando que foi um episódio de “disputas internas entre os colegas de profissão”.

A despeito da atuação da advogada criminal em defesa dos direitos humanos, os princípios de Gizelly foram moldados com a situação: a chance de ganhar 1 milhão e meio de reais. Em poucos meses, foi possível transitar da defesa dos direitos humanos no sistema penal à redução racista de Babu Santana, artista e participante do reality, a um vitimista. Isso nos mostra que não basta fazer parte da branquitude crítica, é necessário abrir mão de privilégios raciais. A competição pelo prêmio do BBB20 é um exemplo.

Mas o que me chamou atenção foi: por que a formação de uma imagem negativa de pessoas brancas racistas causa mais indignação do que os privilégios que essas mesmas pessoas brancas têm no racismo estrutural? Será que nós enquanto pessoas brancas não estamos compactuando com o racismo quando invisibilizamos os privilégios de nossa branquitude, quando não reconhecemos a nossa responsabilidade com a luta antirracista?

Mesmo deturpando o conceito de local de fala para se desresponsabilizar e trazendo o racismo para o terreno da culpa individual, Marcela foi elogiada por pedir desculpas. No mesmo sentido Ivy e Gizelly se comportaram, colocando que o racismo é estrutural e, ao que parece, ao mesmo tempo, uma abstração e um determinismo social acerca do qual nada pode ser feito. As posturas das ex-participantes brancas chegaram a ser elogiadas, em oposição aos participantes homens machistas que não reconheceram o machismo cometido no reality.

Mas as opressões estruturais do mundo moderno estão numa balança comparativa tão superficial? O fato de os homens machistas não reconhecerem o machismo justifica mulheres brancas não reconhecerem sua branquitude? Racismo é um problema sério, atual. Também é crime inafiançável e imprescritível, segundo a Constituição. Não é possível condicionar o reconhecimento do racismo ao reconhecimento do machismo. São opressões complexas e completamente distintas. Será que um coração culpado, magoado, que chora por ter sido apontado como racista é digno de perdão e solidariedade? As desculpas, sem qualquer reconhecimento do racismo e implicação com transformação da realidade, resolvem?

Lembro o que Lourenço Cardoso escreveu: “o branco não é chamado para falar sobre si, a respeito de sua branquitude. Dessa maneira, não entra em questão os privilégios obtidos por causa de sua identidade racial. De forma semelhante ao negro, partilham da ideia de que se existe racismo, isto é problema do negro, ele não se encontra implicado. Quando é acusado de racista, defende-se com o argumento citado: (a) o racista é o outro branco (singular – exceção), (b) o racista é o próprio negro, (c) ninguém é racista no Brasil. Daqui se infere que teoria racial brasileira possui como paradigma a construção do branco enquanto tema-ausente”.

O racismo permite que tenhamos mais privilégios, mesmo quando somos sujeitas oprimidas (mulheres, LGBTs, trabalhadores). Mesmo sendo eu uma mulher, bissexual e trabalhadora, também sou branca e não teria as mesmas oportunidades se fosse negra. Temos o privilégio de acessar lugares, físicos e sociais. Como pressuposto, somos pessoas honestas, capazes, confiáveis e por isso temos mais oportunidades. Nas lojas e shoppings, somos pretensas consumidoras, jamais suspeitas. No mercado de trabalho, não somos rejeitadas por não nos encaixarmos no padrão (branco) da empresa; somos admitidas, com confiabilidade pressuposta. No “mercado amoroso” heterossexual, lésbico, bissexual, não-binário, somos escolhidas para receber afeto, somos objeto de desejo. O padrão de beleza pode não ser acessível, mas, com certeza, é branco. Como pessoas pobres, somos incentivadas, ajudadas, temos capacidade, devemos ter ambição. Quando crianças brancas, aprendemos que somos mais bonitas, somos as princesas, brancas-de-neve, as noivas na festa junina, temos cabelo “bom”. Significa que nossa raça forja estética, participação, visibilidade, autoestima, saúde física e mental, oportunidades de trabalho e estudo, direito à afeto.

Por esse estado de coisas, Frantz Fanon escreveu em 1952 no livro Pele negra, máscaras brancas, “é um fato que brancos se consideram superiores a negros”. Sobre isso, Lourenço Cardoso, citando Stuart Hall, escreveu “a ideia de superioridade racial constituinte da identidade racial branca, não é um traço de essência, é uma construção histórica e social, por isso, pode ser desconstruída”.

Desde crianças, nós, brancos, aprendemos a ser racistas. No entanto, podemos aprender a deixar de ser. Para isso, é preciso refletir individual e coletivamente sobre como lidamos com as relações raciais. É preciso, portanto, ter um “letramento racial”, racializar nossas relações e condutas.

Lia Schucman enumera quatro passos para construir esse letramento racial.

  1. Precisamos reconhecer que nós, brancos, temos privilégios. Nós, pessoas brancas, sempre gozamos de cotas raciais para tudo, pois sempre estivemos nas profissões mais valorizadas, nos cargos públicos, por exemplo. Mesmo sendo pobres, temos mais mobilidades para deixar de ser. Mesmo quando oprimidas, temos mais ferramentas para lidar com a opressão.

  2. Precisamos reconhecer que o racismo é um problema atual, não somente um legado da escravidão. O racismo, portanto, é um problema de todas nós, e todas temos que nos implicar para resolvê-lo. Não é sobre gravar vídeos chorando, não é sobre se arrepender nem é sobre a culpa sentida por pessoas brancas. É preciso mais.

  3. Precisamos utilizar um vocabulário para identificar raça. É preciso falar “brancos e brancas”, “negros e negras”, sem que isso seja acusatório ou ofensivo, respectivamente.

  4. Precisamos reconhecer as práticas raciais e nomear o racismo. Não há metáforas cabíveis para lidar com uma questão real. Quando pessoas negras são alvos de estereótipos negativos e desumanizantes, discriminação, perseguição e criminalização por pessoas brancas e pelo Estado, por exemplo, não é exagero, não é mal entendido, não é “se expressar mal”, é racismo.

E então, o que nós, brancas e brancos, estamos fazendo para nos implicar com a luta antirracista? Vale lembrar: apoio a campanhas e bandeiras antirracistas não nos impede de ser racistas. Não existe nenhum branco que já foi racista em algum momento e hoje não é mais. É preciso vigiar constantemente nossa raça e nossas práticas.

Para finalizar, concluímos que letramento racial não faz parte de benevolência, ativismo, mera sensibilidade. É um dever de todas as pessoas brancas para transformar a sociedade que determina de forma desigual e discriminatória o lugar ocupado de acordo com a raça.

Referências

Vídeo: “Por que queremos ter olhos azuis”, de Lia Vainer Schucman.

Livro: “Peles negras, máscaras brancas”, de Frantz Fanon.

Dissertação de mestrado: “O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil”, de Lourenço Cardoso.


Texto escrito por Letícia Lima.

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