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  • Foto do escritorEquipe Malamanhadas

A dança das vespas


    Quando você bateu a porta, eu achei que meu corpo fosse quebrar em um milhão de pedaços. A única coisa que consegui fazer – lembro vividamente – foi ajoelhar no chão limpo e colocar as duas mãos na cabeça. Tudo doía. Meus olhos, meus braços, minhas pernas, meu tórax e minha nuca pareciam pontas de um iceberg. Calafrios dominavam o meu corpo com uma intensidade que eu nem sabia que existia. A dor e a amargura me impediram de chorar, mas deixaram a minha saliva com gosto de cemitério.

    “Eu não te amo mais”, você me disse, curto e seco, assim que voltou de uma longa viagem de trabalho. Sem mais e nem menos, o peso das palavras atirou um espinho na minha garganta. “Como assim?”, só saiu isso. Nem uma pergunta a mais. “É isso. Eu não posso mais continuar aqui”. O espinho entrava mais e mais fundo.

    Tentei olhar para você, ver o que poderia estar errado. Nos conhecíamos há quinze anos, desde os tempos de colégio. Estávamos juntos há dez. Nossa filha tinha apenas oito anos... Linda, a nossa menina! “O que aconteceu?”, insisti. Tola, eu. “Vou embora. Não posso ficar aqui nem mais um momento”.

    Fiquei olhando enquanto você jogava as roupas na mala. Todas as camisas e calças lavadas e passadas com primor viraram um amontoado de peças amorfas. Com pressa, quase fúria, você lançava os sapatos em uma sacola de plástico. Até mesmo o sapato preto que compramos na promoção da loja refinada... Tudo dentro de uma sacola.

    A porta bateu. Naquele instante, naquele pequenino instante, nós éramos somente um segundo na roda do tempo. Nossos sonhos e nossa história viraram apenas um piscar de olhos. Não sei por quanto tempo eu fiquei de joelhos, com a cabeça encostada no chão e as mãos segurando a minha mortalha invisível.

    Eu e a nossa filha – que você passou a chamar de “a sua filha” – ficamos sozinhas no apartamento alugado. Por muitas e muitas noites, ela acordava do sono infantil, que costumava ser tão sereno e profundo, e me perguntava por você. Eu não tinha o que dizer. Eu não queria dizer nada.

Naquele instante, naquele pequenino instante, nós éramos somente um segundo na roda do tempo. Nossos sonhos e nossa história viraram apenas um piscar de olhos.

    A dor virou cimento seco. Todos os meus sonhos de família e amor, tão frágeis, agora estavam perdidos no silêncio da casa. Perambulando como uma sonâmbula, eu sabia que não tinha sobrado mais nada. Ou achava que sabia.

Tola, eu.

    Os dias foram passando. O sol despontava todas as manhãs, introduzindo na minha vida a possibilidade de um recomeço. O que poderia haver ali para ser reconstruído? Nosso relacionamento encerrado por motivos sobre os quais eu não quero falar. Tenho certeza que muitos os conhecem. Meu coração esmagado por uma porta batida. O fim, eu pensava.

    Um dia, depois que os medos noturnos se ausentaram, eu voltei a olhar para o amanhecer. No canto da janela, uma colmeia de vespas ocupava o lugar de um penduricalho antigo. De tão velho, deve ter caído ou se perdido. Juntas, as vespas voavam ritmadas pela companhia umas das outras. Sempre juntas, circulando em torno da colmeia. Uma dança solidária, que deixava para trás as sombras de qualquer temor e parecia dizer: “Venha para fora. Os nossos caminhos podem se cruzar”.

    E então eu lembrei.

    E então eu continuo lembrando.

    Minha mãe e minhas irmãs vêm nos visitar, eu e a minha filha. Minhas amigas mandam mensagens, aparecem com comidas quentes e frias. Meu celular coleciona chamadas. Amigas que falaram com as amigas das amigas e todas querem me dar uma palavra de conforto. A história de minha avó, tão forte e tão linda, deixada sozinha com dez filhos na situação mais impiedosa. Uma sobrevivente. Criou todos, formou todos, casou todos e acolheu todos – netos e bisnetos.

    O mundo parou e voltou a girar. As vespas continuam dançando. Alegres, donas de si, completas por dentro e por fora.

    E como vai a nossa vida sem você?

    Vai muito bem, obrigada.



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