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EPISÓDIO #35 Série Justiça Reprodutiva: Direito ao próprio corpo

Terceiro episódio da Série Justiça Reprodutiva publicado em 20/06/2022



No centro da imagem, temos o desenho de um útero. O órgão é tem a cor rosa em predominância. Na sua parte interior, temos um tom mais escuro e avermelhado. Os ovários tem forma arredondada e são amarelos. Atrás do útero, temos temos uma figura métrica que remete ao sol, em um tom esbranquiçado que realça o útero. Mais ao fundo, na imagem como um todo, atrás do útero e da figura geométrica, um tanto quanto escondido temos em caixa alta na cor verde musgo a frase: “É sobre ter direito ao próprio corpo”. O fundo da imagem inteira é bege de textura rugosa, com vários pontinhos brilhosos espalhados.
Capa do Episódio #35 | A imagem contém texto alternativo



Confira o episódio em nas plataformas de áudio: Deezer | Spotify | Google Podcast | Stitcher

Confira a tradução do episódio em libras: Canal Malamanhadas Podcast


Confira o roteiro na íntegra:




ALDENORA: No começo deste ano, mais precisamente em fevereiro, as colombianas puderam presenciar a aprovação da descriminalização do aborto até a vigésima quarta semana de gestação. Este áudio que você ouviu no começo deste episódio são elas comemorando a conquista que torna a Colômbia o sexto país da América Latina a flexibilizar o aborto.


JADE: No ano anterior, em 2021, a Suprema Corte do México decidiu pela inconstitucionalidade de se punir pessoas que realizam aborto no país. A regulamentação desta permissão é de responsabilidade de cada estado. Mas já existem locais com a lei já definida, como a capital Cidade do México que permite o aborto até doze semanas. Vamos ouvir a matéria da Rede TVT em setembro de 2021 falando sobre a decisão.



JADE: E em 2020, em decisão histórica, a Argentina aprovou a legalização do aborto até a décima quarta semana. Vamos ouvir a comemoração.





ALDENORA: A comemoração diante da descriminalização do aborto é um grito de alívio preso na garganta depois de tantos anos de luta. Sabe o que essa conquista nesses países têm em comum? A reivindicação pela descriminalização do aborto pelo mundo é uma das principais agendas políticas do movimento feminista e é fruto da persistência e da mobilização para que todas as pessoas com útero tenham direito de decidir sobre o próprio corpo.


JADE: No Brasil, a prática ainda é considerada um crime previsto no Código Penal. Caso alguma mulher provoque um aborto em si mesma ou venha a consentir que outra pessoa provoque, a detenção é de um a três anos. Se o aborto foi provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante, a pena é de reclusão de três a dez anos. E se o aborto for provocado por terceiro com o consentimento da gestante, a pena é de reclusão de um a quatro anos.


ALDENORA: Mas existem três exceções. O aborto é permitido no Brasil em casos de risco da vida da gestante ou quando a gestação é fruto de estupro ou quando o feto é anencéfalo.


JADE: Eu queria voltar ao que eu falei antes, porque tem uma questão muito importante aí: além de privar o direito de escolha sobre o próprio corpo, a criminalização do aborto leva as pessoas com útero a realizarem procedimentos clandestinos e inseguros, sobretudo aquelas mais pobres.


ALDENORA: O aborto clandestino é uma prática que acontece em três a cada dez mulheres brasileiras segundo a Organização Mundial de Saúde, daí a importância da luta pela descriminalização do aborto. Além disso, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto publicada em 2016, treze por cento das mulheres com até 39 anos de idade já fizeram pelo menos um aborto na vida.


JADE: E quando se traz o recorte das mulheres com deficiência, a gente entra em uma outra camada dentro dessa discussão que é o fato dessas mulheres terem o direito à maternidade e ao cuidado de filhos e filhas negado e, assim sofrerem esterilizações ou abortos forçados de forma recorrente.


[VINHETA DA SÉRIE]


VITÓRIA BERNARDES: Quando eu engravidei, o meu maior medo era que eu iria ser orientada abortar. Porque esse é um relato muito comum entre mulheres com deficiência, né? E a gente sabe que o aborto não é um direito garantido para as mulheres no nosso país e como é que é tão comum assim que mulheres ouçam dentro dos consultórios que elas deveriam abordar. Então, a gente sabe também da questão que a gente teve vários avanços do próprio movimento feminista também pela questão das esterilizações que aconteceu na década de 80 mulheres, pobres, enfim, e que a gente vê que isso segue acontecendo para as mulheres com deficiência. Tem uma companheira que ela saiu do parto dela e ela soube casualmente que ela tinha sido esterilizada. E ela ficou assim, “mas como?” e daí pediram, perguntaram pro pai da criança que estava ali e que não era uma pessoa, que ela tinha um relacionamento, se poderiam esterilizar ela. Como assim? E quantas mulheres que não desejam ser mães que querem acessar a questão da laqueadura, para não ter algum risco de ter uma gestação indesejada que não conseguem. Quando um médico orienta uma mulher com deficiência a abortar não é um fator clínico! Porque nunca é! É sobre o exercício de poder. E este médico, e eu vou usar no masculino mesmo, ele olha para uma mulher, pensa, “mas como é que essa mulher, dentro daquilo que eu entendo como maternidade, que é essa maternidade de uma mulher que não consegue nem ter cogitado ter saúde mental, que ela é resumida, só por seu papel de mãe, .como é que eu vou permitir, como é que eu vou achar possível que ela tenha um filho.


[VINHETA DA SÉRIE]


ALDENORA: A pessoa que vocês acabaram de escutar se chama Vitória Bernardes, psicóloga de formação, militante de direitos humanos que atualmente está como conselheira nacional de saúde, representando a AME - Amigos Múltiplos pela Esclerose, e também integra a comissão de direitos humanos do Conselho Federal de Psicologia.


JADE: As esterilizações que a Vitória fala, passaram a ser proibidas pela Lei Número 9.263/96 que determina que não se pode fazer esterilização cirúrgica em uma mulher durante os períodos de parto ou aborto, com exceção de casos de comprovada necessidade. E também, o artigo sexto da Lei Brasileira de Inclusão, aponta que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa de exercer direitos sexuais e reprodutivos, exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar e de conservar sua fertilidade, ou seja, sendo vedada a esterilização compulsória. Vamos continuar ouvindo a Vitória, mas antes, vou pedir para ela se autodescrever.


VITÓRIA BERNARDES: Eu sou uma mulher branca com cabelos pretos com pouco grisalhos, com o cabelo um pouco abaixo da orelha, eles são levemente ondulados. Uso óculos de armação redonda, um óculos preto de armação redonda. Tenho olhos verdes, estou com uma blusa marrom, uso fone de ouvido preto e ao meu fundo eu tenho uma prateleira que tem uma plantinha, alguns livros. Enfim, eu sou uma mulher com deficiência, deficiência física. Tudo certinho, faltou alguma coisa?


JADE: Não faltou nada. Tá tudo ótimo, Vitória.


[VINHETA DA SÉRIE]


ALDENORA: Para falar de aborto e mulheres com deficiência, é preciso destacar um ponto relacionado a maternidade compulsória e a questão da obrigação do cuidado e do ato de maternar que é imposto para as mulheres no geral. Mas quando se fala em mulheres com deficiência, isso não é uma questão imposta, porque para a sociedade, elas nem sequer são vistas como pessoas capazes de serem mães.


VITÓRIA BERNARDES: Então a gente entende que, infelizmente, como o cuidado, ele é colocado como algo obrigatório a ser exercido pelas mulheres, a gente não tem políticas públicas que garantam o exercício da maternidade como esse direito. E o que que eu quero dizer com isso? Se por acaso, eu, enquanto uma mulher com deficiência, que tem necessidade de suporte, se eu não tiver uma política que me garanta ter o direito ao cuidado para exercer a minha maternidade, provavelmente eu não vou conseguir fazê-la da forma adequada. E por que eu estou destacando isso? Porque muitas vezes essa ausência de políticas que garantam a efetivação dos seus direitos, ela é tirada desse contexto social e colocada no indivíduo. Então, assim é a mulher que é incapaz de cuidar. A gente poderia exercer essa maternidade. A questão é que isso não é posto e não é colocado, porque eu até brinco que o maior crime enquanto mulheres com deficiência é justamente o fato de que a gente precisa de cuidado e não só cuida.


JADE: E por não serem consideradas dentro desse contexto da maternidade, onde é importante destacar que também estamos falando sobre direitos reprodutivos, a gente tem um outro ponto que é a falta de informações destinadas às mulheres com deficiência e a ausência de dados públicos sobre essas questões que atravessam as vivências dessas mulheres.


VITÓRIA BERNARDES: É interessante isso né? Porque, até voltando um pouquinho, eu tive uma gravidez que não foi planejada e ela não foi planejada porque eu nem sabia, isso, que eu sou, uma mulher que teve acesso há bastante informação, enfim, eu não sabia qual método contraceptivo era mais seguro para mim. Porque eu sou uma mulher cadeirante e eu não posso fazer uso de anticoncepcional e porque na nossa lógica, que é interesse também de mercado aí, que seja o anticoncepcional piada goela abaixo. Então assim eu ficava, nossa, o que que eu vou usar? Eu vou usar camisinha que já protege também a questão de IST e tal, mas era muito de não ter opção, entendeu? E aí, teve aquela coisa, né? Estourou, enfim, engravidei. E claro, a minha gestação foi uma desejada gestação desejada a partir do momento, né? Foi uma escolha, não foi algo que me foi imposto assim, digamos assim. Mas o quanto que tem mulheres que engravidam por não saberem dos seus direitos sexuais, por os médicos não ousarem pensar que essas mulheres têm vida sexual. Porque é isso, eu não consigo tolerar que mulheres com deficiência possam ser desejadas e, sobretudo, desejar. Então, eu nem falo sobre isso em consultas. Eu já tive vários relatos, por exemplo, algo bem básico, que é a mamografia. Em que nós temos que pedir, “olha, tem que fazer mamografia” e muitos médicos falam assim: “para que? tu já tem tanto problema, tá querendo achar mais um?” Esse processo de desumanização, de reduzir completamente os nossos corpos a uma única característica, que é a deficiência, ignorando também que os nossos corpos são marcados por sexualidade, por raça, por classe social, enfim, por deficiência, enfim. Então isso é muito marcante. É muito simbólico que as mulheres com deficiência não apareçam em nenhum dado, para além desse lugar único, dessa caixinha única da deficiência. É como se a deficiência estivesse apagada de todas as outras políticas.


[VINHETA DA SÉRIE]


ALDENORA: A gente começou este episódio entrando logo nas discussões sobre a descriminalização do aborto, porque achamos que esse tema deve ser debatido de forma urgente. A garantia do direito de pessoas com útero sobre o próprio corpo é para ontem. É tudo para ontem. Agora sim, vamos nos apresentar: Oi, eu sou Aldenora Cavalcante.


JADE: E eu, Jade Araújo. Estamos começando o Malamanhadas Podcast.


[VINHETA DO MALAMANHADAS]


ALDENORA: Este é o terceiro episódio da Série Justiça Reprodutiva realizada ao longo deste mês de junho aqui no Malamanhadas, onde estamos debatendo o acesso aos direitos reprodutivos por mulheres com deficiência.


JADE: No episódio anterior, nossas entrevistadas se encontraram pela primeira vez em uma roda de conversa online e puderam compartilhar entre si, experiências que atravessam a sexualidade e o direito ao prazer e afeto para mulheres com deficiência. E se você perdeu esse papo, sugiro que volte aí para escutar os episódios que já foram lançados. Eu te garanto que eles estão muito massa!


[VINHETA DA SÉRIE]


JADE: Aproveitamos para te lembrar de assinar o nosso feed e assim, receber a notificação dos episódios que estão sendo lançados às segundas-feiras de junho. Você também pode encontrar os episódios desta série no YouTube, em vídeos com a tradução do conteúdo em libras no Canal Malamanhadas Podcast. As referências e a transcrição deste roteiro completo, você encontra no nosso site: www.malamanhadas.com, ou no link na bio das nossas redes @malamanhadas.


ALDENORA: Toda essa produção só foi possível a partir da Campanha Nem Presa, Nem Morta, que luta pela descriminalização do aborto no Brasil, sob o selo do Futuro do Cuidado, uma iniciativa colaborativa, realizada por Grupo Curumim, Anis - Instituto de Bioética, Portal Catarinas, Rede Feminista de Saúde e Coletivo Margarida Alves.


[VINHETA DA SÉRIE]


JADE: No episódio de hoje, como já adiantamos, o tema é aborto. Vamos ouvir as vivências das protagonistas da nossa série: Márcia Gori e Sayaka Fukushima e aproveitaremos para conversar também sobre a importância da mobilização e luta pela reivindicação de direitos das mulheres com deficiência em prol de acessibilidade e direitos básicos. Vamos com a gente?!


[VINHETA DA SÉRIE]


SAYAKA: A minha primeira filha, ela veio sem programar. A diferença foram de dois relacionamentos, então a diferença da minha filha para o meu caçula é de 10 anos e ele também foi uma surpresa porque eu também não programei. Então, há essa diferença de idade. O susto que normalmente quando a gente menos espera se vê grávida, quase aos 31 anos, não esperava engravidar, mas, assim, foi uma experiência que eu sempre desejei ser mãe. Para mim, hoje, quando eu olho para trás, na minha maturidade, eu vejo o quanto passou rápido, eles cresceram tão rápido e já tão independentes, já tão aí, com os pés no chão, isso dá um orgulho danado.


ALDENORA: A Sayaka é mãe da Manami, de 30 anos e do Edilson, de 20. A filha mais velha é advogada e o mais novo acabou de terminar dois cursos técnicos e está tentando a faculdade. Como mãe, ela está passando por um momento que é muito novo para a família.


SAYAKA: Aquele famoso síndrome do ninho vazio.


ALDENORA: Pedimos para ela explicar melhor para nossos ouvintes entenderem.


SAYAKA: Então, minha filha casou, foi embora, meu caçula também foi embora. São independentes. Aquela velha história: cresceu os passarinhos, bateu asas e voou. Então é bem isso, sabe.


ALDENORA: Mas mesmo saindo do ninho, a relação construída com os filhos foi sempre regada por afeto e companheirismo.


SAYAKA: Eu fiz a minha graduação superior já tardiamente, com 40 anos, então para mim foi aquela satisfação ver os meus filhos na minha formatura, sabe. E assim eu fui ovacionada pela turma, foi tão gratificante, sabe, ganhei uma placa também, então para mim foi a emoção, foi a realização. E ser mãe é indescritível. Eu não tive nenhum empecilho, nenhuma dificuldade, a questão da deficiência auditiva não impediu de nada. Não limitou, sabe, a maternidade, em nada.


ALDENORA: Os dois filhos são muito atenciosos com Sayaka.


SAYAKA: Eles se preocupam muito comigo, sabe, por eu ter não só a questão auditiva, mas por eu ter um problema no fígado e não tem cura, é uma doença rara, foi descoberta vai fazer quinze anos, então eles sempre se preocupam em relação ao meu dia a dia. Eu peguei covid em setembro do ano passado, fui para a UTI, tive uma hemorragia no estômago, foi terrível, eu pensei que eu ia me embora. Mas a presença deles é fundamental na minha vida, foi o que me segurou, assim, sabe. Eles se revezavam, depois da UTI eu fui pra enfermaria e eles ficavam comigo, eu não podia tá só porque eu tinha risco de queda. Então, eles são muito presentes na minha vida, graças a Deus.


ALDENORA: A cumplicidade é tão forte entre eles que quando tocamos num assunto sensível na vida da Sayaka, que foi o aborto que sofreu, ela comenta que compartilhar com os filhos as dores e os traumas causados pela situação, foi muito importante porque sempre que ela fica mais emotiva ao lembrar do ocorrido, seus filhos estão ali presentes.


SAYAKA: O que me ajudou também foi eu ter falado para os meus filhos, então eles entendem, tanto minha filha quanto o meu filho, eles entendem esse período que eu fico mais sensível, começo a chorar, é um choro que é triste, é um choro triste.


[VINHETA DA SÉRIE]


ALDENORA: O aborto que a Sayaka sofreu, aconteceu ainda na adolescência, quando ela tinha 15 anos e engravidou do primeiro namorado, que também tinha a mesma idade. A decisão partiu dos familiares do casal que quando souberam da gravidez, se reuniram e decidiram entre si pelo aborto, argumentando que os dois eram muito novos para gerarem uma vida. A Sayaka não foi consultada em nenhum momento sobre aquela decisão.


SAYAKA: Foi uma experiência que não foi boa para mim. Deixou traumas e muitas sequelas no psicológico, porque eu era muito jovem e eu não tive o poder de decisão. Como eu era de menor, então houve aquela imposição de decidirem por mim, não chegaram a mim e perguntaram: “Olhe, o que que você acha? Você concorda?”. Não houve isso. Então, foi aquela imposição pela idade, pela vergonha, o que a sociedade, o que as pessoas, a família vai dizer.


ALDENORA: O aborto clandestino quase levou Sayaka à óbito.


SAYAKA: Eu tive um choque anafilático, não foi legal, quase eu vim a óbito. Faltou luz no momento, foi terrível quando eu vi foi à vela. Todo mundo “pega a vela, pega a vela” e eu só de longe escutava aquilo que estava acontecendo. Depois eu tive ainda o processo de expulsão, não foi completo, então ficou restos ainda. Então para mim foi terrível, foi uma experiência horrível isso. Em todos os sentidos. Físico, psicológico, não foi legal. Mas eu era menor, infelizmente aconteceu. Mas três anos depois eu vim ter minha filha e segurei e disse: “Olha, esse bebê vai nascer e não tem ninguém que venha falar para mim que não”. Graças a Deus estão aí firmes e fortes os dois.


ALDENORA: A sugestão da família em realizar um outro aborto ainda voltou a rondar a vida da Sayaka quando ela engravidou do Edilson.


SAYAKA: E o interessante é que quando eu engravidei do meu caçula, eu já estava com 31-32 anos. A família, interessante isso, eu já adulta, mulher formada, independente, a família ainda questionou: “Vai ter esse filho? Você já com essa idade?”. Minha filha já estava maiorzinha, estava pré-adolescente. “Eita, sua filha já está grande, vai ter esse menino?”. Aí foi quando eu disse: “Mas, qual o problema? de ter uma diferença de dez anos”. Eu não vi nenhum problema. Mas é aquela coisa, ainda ficou sugerindo: “Não, mas não tem esse filho, não. Pra quê ter esse filho?”. Outra vez vem aquela situação: Você quer ter filho? Você não quer? Teria que ter essa consulta e não ficar tentando achar pelo outro o que deve ser feito e o que não.


ALDENORA: Firme com a decisão de ter a Manami e o Edilson, as sequelas daquele momento vivido na adolescência, infelizmente, ainda a acompanham.


SAYAKA: Mas, assim, sempre fica a sequela psicológica, sempre, mesmo fazendo terapia, sempre fica. Porque vem aquela lembrança e você fica: “poxa, deveria ter feito diferente, deveria ter feito assim, assado”. Sequelas de relacionamento, você acaba, eu no meu caso eu tive vários relacionamentos que não deram certo, eu acho que isso também influi. As sequelas de um relacionamento abusivo que eu passei, de violência doméstica, então, além de tudo isso, a pressão psicológica. Eu acho que deixa sequela até para você se relacionar de novo com uma pessoa e tudo, sabe? Eu acho que foram as principais: o peso na consciência, a depressão, gera um monte de transtorno, sabe? E o fato de você também não conseguir um relacionamento saudável. Parece que você entra em relacionamento, alguns muito parecidos também. Abusivos.


ALDENORA: Mas mesmo tendo passado por essas situações, a Sayaka viveu um amor tranquilo nos últimos anos que podemos dizer que foi um encontro de almas.


SAYAKA: Esse relacionamento com o meu esposo que faleceu, foi um relacionamento maduro. Ele já tinha 63 anos, eu também já estava na minha idade madura. Então foi um amor maduro e saudável para tudo, porque era só nós dois. Os filhos dele tudo grande, casaram, os meus também já saíram de casa, casou, então ficava só nós dois. E era de muito companheirismo, sabe, de muito companheirismo, diálogo. Para mim foi um momento maravilhoso, saudável, de muita paz, de um porto seguro, de ter uma pessoa que lhe entende, que nesses períodos de síndrome do ninho vazio que eu sentia uma falta, chorava pela ausência dos meus filhos em casa, então ele vinha e acalmava e dava o aconchego. Isso é tão importante, mas foi um amor mais maduro que eu consegui essa paz. E eu acredito que tem aquela história da alma gêmea, né. Foi minha alma gêmea, sabe.


ALDENORA: O encontro entre os dois foi importante para que Sayaka conseguisse quebrar um ciclo de relacionamentos abusivos.


SAYAKA: Porque a gente fica meio gato escaldado. Como diz no popular, de tanta dá murro em ponta de faca que você fica gato escaldado. Mas ele foi, o começo foi interessante. Ele sempre foi muito cuidadoso comigo. O cuidado foi o principal quando a gente começou a se conhecer. Ele cuidava de mim de um jeito e isso me despertou. Até então eu não queria mais ninguém, eu queria tá só, e ele não, muito atencioso, muito zeloso, cuidando de mim. Então, isso foi o ponto principal para a gente começar esse relacionamento. E foi uma redenção também de tudo que se passou no passado. Você aquece o coração. O coração tava frio, sem perspectiva, e aí quando você vê, começa a aquecer, você começa a paixão, a se apaixonar por uma pessoa, a ter amor. É muito bom. A vida fica colorida.


[VINHETA DA SÉRIE]


JADE: A Sayaka, que contou sobre seu aborto pra gente, fala que tudo que viveu fez com que ela se posicionasse a favor da legalização.


SAYAKA: É traumático. Quando a gente vai falar de direitos sexuais e reprodutivos. Hoje eu levanto essa bandeira de que tem que se legalizar mesmo porque a clandestinidade mata muitas mulheres, outras, quando não mata deixa sequelas. Eu acredito que legalizando, a possibilidade de ter um tratamento humano, com um hospital e tudo é o ideal para não passar o que eu passei de clandestinidade.


JADE: Esse ponto que a Sayaka tocou é um fato que realmente acontece em países em que o aborto ainda não é legalizado, o que é muito grave. Em um relatório divulgado neste ano pelo Instituto Patrícia Galvão e pelo Instituto Locomotiva foi constatado que oito em cada dez pessoas no Brasil dizem saber que o aborto clandestino é uma das principais causas de morte de pessoas grávidas no país. A pesquisa também mostra que 77% das pessoas entrevistadas concordam que a classe mais prejudicada pela criminalização do aborto são mulheres de baixa renda, que não tem condições e acesso médico. Ou seja, as mulheres estão morrendo porque têm o direito ao corpo negado diariamente.


[VINHETA DA SÉRIE]


JADE: Quem também passou por um aborto e hoje defende o direito das mulheres a essa prática, foi a Márcia Gori, lá de São Paulo. Melhor dizendo: a Márcia é favor de políticas públicas que garantam o direito de escolha.


MÁRCIA: Eu interrompi. E você vai falar assim: “Você é a favor do aborto?”. Sou a favor de ter políticas públicas para as mulheres que escolhem fazer aborto. É bem diferente de ser a favor do aborto. É isso que não é explicado! Que no movimento da mulher, precisa ser muito bem explicado isso, entendeu? Essa mulher que engravida, ela não pode ser penalizada. Se caso ela decidir sobre o corpo dela, que ela não quer esse filho. Se é errado, não é, é problema dela com a espiritualidade dela. Não é problema social, entendeu? Então, eu sou a favor que o estado garanta vida e liberdade para essa mulher ter a escolha dela. Agora, na questão de tirar um filho, eu, Márcia, hoje não faria isso jamais na minha vida. Eu! entendeu? Mas eu também compreendo que se eu tivesse tido o apoio que eu precisava na época, de repente eu não teria tirado ou se eu tivesse tirado, não teria quase morrido, como aconteceu comigo. Que foi por muito pouco que eu não morri. Ia fazer parte da estatística de mulheres que morrem por praticar esse direito dela, entendeu? Então é uma coisa muito bem diferenciada na minha vida. Acho ruim, acho! Acho que a gente não tem direito mesmo de tirar a vida de alguém. Mas se assim ela achar que é melhor para ela, quem sou eu para criticar e condenar ela? Então, para mim, não tem lei para isso. Isso é um assunto pessoal e intransferível dela. É um direito intransferível. Nem o marido dela tem o direito sobre o corpo dela! Se assim ela decidiu, ela tem que ser respeitada dentro da decisão!


JADE: A Márcia abortou em uma idade um pouco mais velha do que a Sayaka, quando já tinha alcançado a maioridade.


MÁRCIA: A questão desse filho meu, foi o seguinte. Foi quando eu perdi. Perdi? Quando eu me tornei mulher, né? Ninguém perde nada, né? Mania de perder virgindade, tema mais arcaico e antigo do mundo. Então, quando eu me tornei mulher com uma pessoa, eu engravidei dessa pessoa, não assumiu. Eu tinha 18 anos. Aí essa pessoa não assumiu, não quis, eu também não fui ficar brigando com ninguém. Na época, a minha mãe trabalhava, eu ficava em casa. Eu vivia daquilo que minha mãe dava para mim, porque, como empregada doméstica, não ganhava tão bem assim. Aí não tinha creche na época, a quase 40 anos atrás. Eu estou com 58. É 40 anos atrás mesmo! Nossa, ô Jade! Tinha que me lembrar que estava tão, tanto tempo assim. Então, não tinha creche, você sabe que não tinha essas políticas públicas para mulheres trabalhadoras que necessitavam. Aí eu optei em fazer um aborto. Eu fiz, quase morri, me arrependi! Logo em seguida que eu saí do lugar! Chorei muito, mas já não tinha mais nada de ser feito. E hoje, em minhas orações, há uma pessoinha que eu vivo pedindo perdão.


JADE: Essa decisão envolveu muitas coisas que atravessam a vida dela enquanto uma mulher com deficiência.


MÁRCIA: Envolveu falta de política pública na época para garantir, por exemplo, para garantir essa criança durante o dia ficar em um local, porque mesmo não trabalhando em casa, eu não tinha condições de cuidar da criança. Minha mãe não podia sair para trabalhar e largar eu e essa criança dentro de casa. Eu já ficava em casa, quer dizer, ela ia deixar uma criança na minha responsabilidade? Porque até então eu não usava cadeira de rodas. Eu sentava num lugar, e se alguém não viesse para me levantar, eu ficava ali, dias, meses, anos, até criar raiz, vamos dizer assim, né? Precisava de pessoas para me auxiliar em algumas atividades para mim. Entendeu? Então, quer dizer, a minha mãe ganha pouco, o medo que minha mãe teve com a responsabilidade. A situação que não nos ajudava, entendeu? Não tinha um caminho para essa criança vir. Poderia até ter, mas nós na época não enxergamos. Entendeu? A gente relutou muito, tanto é que o aborto que eu pratiquei foi com 3 meses, até um pouco mais. Por isso que corri o risco de vida porque a gente relutou muito nisso. Eu também não ia me enfiar também na vida de homem, só para garantir que essa criança viesse. Poderia ser o certo? De repente até poderia. Que estaria dando o direito dele, vir, nascer e ter uma vida. Mas não é dessa forma. Sabe? O contexto é muito complicado. A circunstância era muito atípica. Se fosse hoje não, hoje seria tranquilo, mas na época era muito atípico.


[VINHETA DA SÉRIE]


JADE: Apesar do aborto ser uma questão carregada de estigmas, existem pesquisas que nos ajudam a entender o perfil e as motivações das brasileiras que realizam a prática. Em 2009, o Ministério da Saúde publicou um livro sobre os 20 anos de pesquisa sobre o aborto no país, onde foi constatado que o perfil das mulheres que optam pelo aborto estão entre mulheres de 20 a 29 anos de idade, dentro de uma união estável, com até oito anos de estudo, são trabalhadoras, católicas, com pelo menos um filho e são usuárias de métodos contraceptivos. A pesquisa aponta que elas abortam com um medicamento que aumenta a contração uterina, induzindo ao aborto. Também tem um estudo desenvolvido na Universidade Federal do Ceará em 2005 que aponta que os motivos para as mulheres abortarem, considera vários recortes de idade, profissão, condição socioeconômica, influência de outras pessoas e pressão familiar. Por isso, não existe uma motivação específica. Mas o que existe, dentro desse contexto em que o aborto ainda é crime, é uma constatação que vale para todas as mulheres: tirar o direito dessa escolha, é muito violento. A Márcia, nossa protagonista, concorda.


MÁRCIA: Iisso é a maior violência que se pode ter no mundo. Se essa mulher quer ter o filho dela, ninguém tem o direito de chegar e tirar esse direito dela. Mesmo ela tendo uma deficiência intelectual. Entendeu? Tudo tem que ser muito bem entendido. Se ela for interditada, ela teria que não ter consciência cognitiva de nada, vamos dizer assim, entendimento da situação. Até aí, acredito que ainda é questionado. A gente sempre levantou uma bandeira de questionamento sobre isso, sabe? O mínimo que seja, o entendimento e ela dizer que ela quer, ela tem esse direito. E já vi casos de gravidez, sabe, família esconder fazer o aborto, sem a permissão da pessoa. A pessoa com deficiência intelectual, tem família que entende que eles não têm direito à escolha. Na questão da laqueadura, sem autorização da mulher com deficiência intelectual, porque a gente tinha muitas denúncias de mulheres que a família levava no ginecologista com história de que era um exame ou o próprio médico já marcava uma laqueadura, alguma coisa e já fazia sem o consentimento. E hoje a gente sabe que isso não pode acontecer mais. Então hoje é terminantemente proibido. A mulher com deficiência, ela tem que concordar, tem que ter o consentimento dela para tudo. Entendeu? Para ato sexual, para laqueadura, para ser mãe, entendeu? Ela tem direito de ser mãe, tem direito de criar seu filho. Se tiver uma deficiência intelectual, ela tem o direito a ser assistida. Entendeu? Normalmente assistida por alguém, ou pelo marido, se caso ele não tiver uma deficiência intelectual, ou pelos pais, ou alguém da confiança dela. Mas jamais tirar o direito dela de ter uma vida sexual ou de ter os seus filhos e criá-los, entendeu? Tem que ser tudo muito, muito bem certinho, muito bem feito, porque isso não pode acontecer.


JADE: A gente traz esses dados e apresenta essa realidade, mas também é preciso reforçar algo que citamos um pouquinho no começo do episódio que é a ausência de informações e pesquisas mais precisas sobre mulheres com deficiência quando se trata de direitos reprodutivos. Porque sem esses dados, sem informações e sem pesquisas sendo elaboradas, é muito difícil que se reivindique direitos e que se exijam políticas públicas que contemplem as mulheres com deficiência. Quem dá uma palhinha sobre esse assunto com a gente é Érika Thomaz, professora do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal do Maranhão, a UFMA, que atua mais especificamente na área de avaliação de políticas públicas de saúde, em especial no Sistema Único de Saúde, o SUS. A Érika participou de uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Saúde voltada para avaliar maternidades no Brasil que prestam assistência ao parto e ao nascimento. Neste trabalho, os pesquisadores avaliaram a acessibilidade desses espaços para pessoas com deficiência. A gente vai tratar sobre essa pesquisa e esse assunto no nosso próximo episódio, mas a Érika veio aqui para pontuar algo importante. Mas antes, vamos ouvir a sua autodescrição.


ÉRIKA THOMAZ: Eu sou Érika Thomaz, sou mulher parda. Eu tenho aquelas características de um nariz mais achatado, o lábio mais grosso e os cabelos encaracolados, bastantes encaracolados. O meu olho foi mudando de cor, então tenho um olho amarelo. Tenho 1 metro e 58 de altura, peso 53 kg. E hoje eu estou dando essa entrevista aqui de dentro da minha casa, em São Luís, Maranhão, na minha sala. Atrás de mim, tem uma janela, que mostra… na verdade, é uma janela, é um quadro, com uma janela aberta, mostrando os azulejos, os casarões da cidade de São Luís. Estou usando uma camisa preta de bolinhas brancas, que eu adoro!


JADE: A Érika fala sobre como a ausência de pesquisas sobre mulheres com deficiência impacta a criação de políticas públicas no Brasil para esse grupo.


ÉRIKA THOMAZ: As pesquisas brasileiras como um todo precisam dar mais visibilidade a essa população que acaba sendo vítima de escassez de políticas públicas porque se tem pouca informação a respeito dessas pessoas e não se consegue fazer um planejamento adequado e a implementação de políticas públicas para resolver o problema, porque o problema sequer chega a ser mensurado. Então, por exemplo, o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos, que é o SINASC, não tem informação ali nem sobre a mulher, se ela tem ou não uma deficiência visual, motora ou auditiva, nem sobre se o bebê nasceu com algum problema nesse sentido. Então de fato, nós temos uma escassez de sistemas nacionais para fazer a vigilância efetiva, a vigilância epidemiológica efetiva da situação de saúde e da existência de recurso humano e recursos físicos voltados para essas pessoas, que permitissem, portanto, a implementação de políticas públicas mais adequadas e mais racionais para resolver esse problema.


JADE: Além disso que a Érika compartilha com a gente, também temos a questão da acessibilidade dessas pesquisas, de se pensar em um conteúdo que seja compreensível para mulheres com deficiências diversas. Se já é difícil a produção desses dados, ainda mais complicado é esses dados chegarem ao público mais interessado: as mulheres com deficiência.


[VINHETA DA SÉRIE]


JADE: Em uma sociedade capacitista e machista, as mulheres com deficiência, como vimos, não são vistas como pessoas capazes de maternar e cuidar. A visão estigmatizada também coloca essas mulheres em um local de negligenciamento, onde elas sofrem de um capacitismo estrutural carregado de violências.


ALDENORA: São muitas as barreiras que as mulheres com deficiência enfrentam para romper ciclos de violências diárias constantes, o que contribui para a manutenção desses ciclos e também colocam essas mulheres como pessoas que sofrem muito mais.


JADE: Para lutar contra esse cenário e também reivindicar direitos básicos, muitas dessas mulheres se organizam politicamente em movimentos sociais e coletivos. Esse envolvimento surge, principalmente, a partir do entendimento dessas mulheres enquanto pessoas com deficiência. Foi assim com a Sayaka.


SAYAKA: Me envolvi nos conselhos por dois biênios e fui conselheira do segmento dos auditivos aqui de Recife, conselho municipal da pessoa com deficiência de Recife, no município e foi muito assim, eu aprendi muito, sabe. Até então eu nunca tinha me envolvido nessas questões de pessoas com deficiência e principalmente da questão da surdez, do surdo, do seguimento da deficiente auditivo.


JADE: Mas esse envolvimento veio carregado de preconceitos, tanto por ela ser mulher, quanto por ela não ser totalmente surda.


SAYAKA: Porque dentro do meio do conselho, o meu segmento dos auditivos, teve um certo preconceito por eu ser unilateral, surdez unilateral profunda e usar aparelho. Meu segmento surdo, só entende, a comunidade surda só entende como representante legal aquele surdo bilateral e que fale em libras. Então, outra pessoa, ele exclui. Infelizmente acontece isso no meu segmento. Então, eu acho assim, foi o que questionei: “Poxa a gente tá no mesmo barco, lutando por direitos mais específico para o direito do surdo, independente se é unilateral, bilateral, se tem implante coclear, se usa aparelho, se é oralizado, se não, entende? Se é ensurdecido”. Então, todo mundo tá num pacote só e todo mundo lutando junto, tinha que tá unido e não fazer esse tipo de discriminação por eu tá usando aparelho por ser unilateral profunda. Infelizmente acontece isso.


ALDENORA: Já para a Márcia Gori, que é criadora da ONG Essas Mulheres, atualmente extinta, o ativismo e militância começaram a partir do momento em que ela adquiriu a deficiência.


MÁRCIA: A militância chegou para mim desde o dia que eu adquiri a deficiência. A partir desse momento, a militância chega na vida da gente de uma forma ou de outra, entendeu? Mas vamos dizer assim, naquela mesa em que você sai para a rua, que você questiona, que você vai falar com o político, que você tenta juntar pessoas, essa militância, eu entrei com 32 anos, mais ou menos. Hoje eu estou com essa 58, então são 26 anos, né? Então, aí que fui entrando. Formei em direito. Aí quando eu me formei, eu vi que a legislação do Brasil tem muita coisa mas não é cumprida em quase nada. E aí você começa os questionamentos e começa a ganhar os amigos, aqueles que te adora, que vê você chegando, e pronto: “Lá vem a chata falando de rampa, falando de acessibilidade, falando de mulher, falando de escola, de educação, sexualidade”. E é um tema que também não se falava muito de sexualidade. Eu também comecei a falar sobre esse assunto. Hoje já tem várias, aí já.


ALDENORA: A luta se fortaleceu quando a Márcia notou que havia um silenciamento dentro dos movimentos quando se tratava de lutar pelos direitos das mulheres. E quando começou a participar ativamente, muitos relatos de violência contra a mulher chegavam até ela.


MÁRCIA: Como eu estava na militância do movimento da pessoa com deficiência, eu tava observando que só se falava da pessoa, no geral, homem, mulher, tudo. Mas ninguém focava no assunto da mulher, especificamente. E por eu ser mulher, eu via que muitas reclamavam da questão do trabalho, assédio moral no trabalho, até assédio sexual, violência doméstica que ninguém comenta, né? Muitas vezes a pessoa tem violência doméstica ou pelo cuidador ou por algum familiar que cuida, ou às vezes até pela própria família, né? E algumas relatou que chegavam a ser agredidas de várias formas - física, emocional, psicológica, enfim. Aí eu fui me atentando. E uma coisa que eu realmente me engajei nessa área, foi no momento que eu fui Presidente do Conselho Estadual da Pessoa com Deficiência em São Paulo. Dentro de várias reuniões, a gente escutava muitos relatos, né? E a gente foi observando. Aí eu comecei a fazer tipo reuniões, tipo uma vez por semana com diversos assuntos. E quando eu fiz uma de mulher com Deficiência foi a que mais teve percussão.


JADE: A Márcia mesmo relata que também já passou por determinadas violências.


MÁRCIA: Hoje eu estou home office, né? Mas eu já trabalhei em diversos locais de trabalho e já sofri assédio moral. Sexual não. Já sofri assédio moral, sabe? Barreira no banheiro para entrar, não ter uma pessoa para te auxiliar, porque no meu caso eu preciso de pessoas para me auxiliar em algumas atividades da vida diária, né?


JADE: As violências também incluem, violências sexuais, como quando ela sofreu duas tentativas de abuso. E, na militância, ela já ouviu relatos de outras mulheres que passaram por isso.


MÁRCIA: Dentro da militância, sempre vi muito abuso, entendeu? Dentro da própria casa da pessoa. Mais mulheres. A mulher com deficiência intelectual é a que mais sofre abuso. Às vezes sofre abuso do próprio vizinho, é sempre de alguém muito próximo. Entendeu? Não é desconhecido, é conhecido que abusa.


JADE: Segundo um estudo do Fundo de Populações da Nações Unidas, pesquisas demonstram que a incidência de maus-tratos e abuso de mulheres com deficiência excede em muito o de mulheres sem deficiência. Existem casos em que os violentadores geralmente são cuidadores. E muitas vezes, essas mulheres se encontram presas em relacionamentos com parceiros violentos ou outros membros da família por dependerem financeira e socialmente dessas pessoas para sobreviverem.


ALDENORA: O Guia produzido pelo Coletivo Feminista Helen Keller, que inclusive já citamos nesta série, afirma que são recorrentes os casos em que pessoas tentam realizar denúncias sobre violência contra mulher com deficiência e, geralmente, as vítimas são encaminhadas para os departamentos dos abre aspas vulneráveis fecha aspas ou dos abra aspas direitos humanos fecha aspas, ignorando o gênero da vítima, marcador de muita relevância para combater essas violências.


[VINHETA DA SÉRIE]


JADE: Que os movimentos sociais e a militância ativa fazem diferença na conquista de direitos para pessoas com deficiência, isso é um fato bem demarcado. E tem algumas datas e leis que são frutos dessa luta. No dia 21 de setembro, por exemplo, é comemorado o dia nacional de luta da pessoa com deficiência. A data foi instituída pela Lei nº 11.133/2005 com o objetivo de promover a luta pela inclusão das pessoas com deficiência. Mas, as comemorações ocorrem desde 1982 por uma iniciativa do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes que vem debatendo e realizando transformações sociais há mais de 40 anos.


ALDENORA: Nesse meio, é necessário e importante ouvir e acompanhar as mulheres que se engajam para mudar a realidade das pessoas com deficiência. E aqui, vou aproveitar para apresentar para vocês, ouvintes, dois exemplos de coletivos de mulheres com deficiência atuantes. Um deles é o Coletivo Hellen Keller. Quem fala dele pra gente, é a Fernanda Vicari, lá do Rio Grande do Sul, que é uma mulher com deficiência, com distrofia muscular e é ativa dentro de diversos instrumentos de reivindicação de direitos, em associações e conselhos.


FERNANDA: Eu sou Fernanda, uma mulher negra de pele clara. Tenho o cabelo cacheado na altura do ombro, com mechas loiras. Tô usando uma tiara amarela, um casaco de inverno fechado, casaco preto, fone de ouvido, o ambiente que eu tô é o meu quarto, onde aparece uma parede rosa com alguns quadros da Frida Kahlo. Tenho 41 anos, moro em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre. Eu sou Assistente Social de formação, trabalho a 10 anos na área. Mais ou menos nesse mesmo período que eu comecei meu ativismo, primeiramente dentro de espaços de construção social, do controle social aqui no meu município. Posteriormente, em Porto Alegre, depois com outros movimentos chegando até o movimento feminista. Pensando no recorte de gênero dentro do movimento passei a fazer parte de um grupo de mulheres com deficiência e hoje faço parte do Coletivo Feminista Hellen Keller.


ALDENORA: O Hellen Keller é uma referência imensa para nós do Malamanhadas, e estamos usando muitos dados e informações do guia feito pelo coletivo aqui nesta série. A Fernanda vai falar um pouco para os nossos ouvintes sobre o trabalho desenvolvido dentro do coletivo.


FERNANDA: O coletivo, eu e outras mulheres, outras mulheres com deficiência, a gente começou a pensar no coletivo. Em setembro fazem 4 anos, foi 2018, em pensar um coletivo que fosse feminista e que as integrantes fossem somente mulheres com deficiência. Por que que a gente começou a pensar nesse coletivo? Por que dessa necessidade? Pelo fato de um movimento feminista ainda não reconhecer ou adentrar dentro das pautas que nós, mulheres com deficiência, trazíamos, assim como o movimento de pessoas com deficiência também não dá conta da questão de gênero. É um movimento assim, majoritariamente feito por homens, então a gente pensou num coletivo nesse viés, nessa busca pelo reconhecimento e visibilidade das nossas pautas.


JADE: Existem várias outras organizações, coletivos e associações que constroem a luta pela garantia de direitos para mulheres com deficiência. Mas, puxando a sardinha aqui para o nosso estado, aqui no Piauí, tem um projeto que admiramos muito que é o Mulheres de Visão que começou como um programa de rádio e depois se transformou em um projeto do empreendedorismo voltado para mostrar a potencialidade das mulheres cegas e de baixa visão. E quem fala sobre ele, é a Ana Cláudia.


ANA CLÁUDIA: Eu sou Ana Cláudia do Carmo Silva, eu tenho 37 anos, sou negra, estou um pouquinho acima do peso, estou sentada aqui numa cadeira, no meu quarto. Atrás de mim tem uma parede azul. Eu tenho uns cabelos cacheados, no momento, estão presos, tipo um coque assim bem arredondado. Estou com uma tiara, os meus cabelos, eles estão castanhos claros e no momento, eu não estou usando nenhum acessório, estou com o fone de ouvido. E é isso. Assim porque o Projeto Mulheres de Visão não é assim um curso, um simples curso, curso que você faz e ele termina. O Projeto Mulheres de Visão, ele tem essa continuidade porque a gente aprende a teoria e agora, a gente está desempenhando a prática, que é justamente o desenvolvimento dos negócios que foram criados durante o curso, para que a gente possa atender a demanda que existe no mercado na questão da acessibilidade nos meios de comunicação, a questão da acessibilidade nas escolas, em qualquer ambiente. A gente quer com o projeto Mulheres de Visão justamente facilitar a questão da empregabilidade das pessoas com deficiência e a questão, assim, de reduzir o máximo a nossa limitação, porque a partir do momento que eu chego no local e esse local, ele tá adequado, ele tá facilitado, para mim, seja com rampas, seja com algum recurso em braille é, ou alguma indicação áudio com audiodescrição, então isso tudo vai tá facilitando e a minha deficiência, ela acaba sendo reduzida, ela deixa mais de ser tão limitado como antes. Então, agora as meninas que fizeram o curso, a gente vai estar trabalhando, trabalhando nessa parte de promover essa questão da acessibilidade em vários ambientes, tanto cultural, como eu já falei, nas escolas, entendeu? Onde estiver precisando, onde tiver a demanda de falta de acessibilidade em todos os aspectos, não só visual, mas também físico também.


[VINHETA DA SÉRIE]


ALDENORA: Mesmo com tantos exemplos de mulheres com deficiência se engajando na luta por direitos, a gente também não pode desconsiderar o quanto que ainda é difícil se manter nesse caminho, como a Vitória Bernardes lembrou aqui.


VITÓRIA: Só que como que a gente vai ter força para lutar, se a gente ainda não se entende nesse lugar que é humano, tanto quanto os outros, que é um cidadão detentor de direitos, uma cidadã detentora de direitos como qualquer outra cidadã, a gente tem essa dificuldade muito grande. E como os espaços historicamente nos foram negados, a gente também não tem tanta experiência de disputas políticas e de ocupar espaços políticos. Essa é uma realidade! Porque muitas vezes a gente não conseguia nem sair das nossas casas, como muitos de nós ainda não consegue. A gente ainda ao invés de estar disputando sobre que economia nós queremos, a gente ainda está disputando sobre se a porcaria do ônibus vai ser acessível ou não, se vai ter libras em uma palestra que eu quero ver, se o lugar que eu vou ir, vai ter como eu acessar, se os documentos que vão ser entregues ali, vão me entregar também em formato acessível. Se vai ter uma linguagem simples para pessoas com deficiência intelectual. A gente ainda tem muita luta para garantir o básico e isso desmobiliza muito, porque isso atrasa muito a nossa luta. Na verdade, isso é intencional, isso é resultado desse capacitismo estrutura que nos afasta de tantas formas. E negar acessibilidade é uma dessas formas, que é uma forma muito eficaz para eles, né? Então eu acho que o nosso maior desafio é justamente tentar se aproximar com pessoas com deficiência. É tentar ir abrindo portas como já abriram muitas portas para nós. Eu sou o resultado de muitas pessoas com deficiência, de muitas mulheres com deficiência que foram lá e abriram caminhos, né? Só que o problema é que a gente não conta muito a nossa história, a gente não tem tanta essa coisa de saber. Às vezes a gente sente, e essa é uma sensação que eu ainda experiencio, que é justamente de tu chegar nos lugares e tu se sentir completamente sozinha, porque tu não vai te reconhecer em nenhum corpo que está ali, em nenhuma identidade ali semelhante a tua deste lugar da deficiência, né? Então é muito importante que a gente busque ativamente. As que vão conseguindo encontrar brechas nesse sistema aí, perverso, tentando mobilizar, tentando tratar a mulherada para se organizar. Porque é isso, a gente precisa se organizar, a gente precisa ocupar. Então toda vez que alguém está no controle social, que alguém está na academia, que alguém está ali na organização do bairro, que está tentando ali, se movimentar e a gente tentar fortalecer também essas mulheres, para que elas ocupem cada vez mais lugares, e aí a gente vai engrossando o caldo porque, como eu falei, direito é conquistado! Então, é muita mobilização. E a gente é um número muito grande. Nós somos quase 27% das mulheres brasileiras, é um número muito expressivo. Então, a gente tem que catar onde estão essas quase 27% das mulheres para fazer barulho, para conseguir ter força política para dizer: “Oh, não vão nos deixar lá no etcetera. Não vamos mais aguentar aqui!”. “Ah, não, esse tema é para depois!”, não é! Esse tema é para agora! Até mesmo porque a deficiência tem uma relação muito íntima em todo o processo de desigualdade. A gente precisa ter essa força! É por isso que a gente está negligenciada, é por ser quem a gente é maioria de pessoas pretas, mulheres pobres. Não é atoa que a gente é negligenciado, né? É por isso que a gente tem que se unir forte mesmo para conseguir mudar. Então, realmente só a luta muda a vida. O meu principal entendimento é: Vamos fortalecer quem está ao nosso redor, vamos catar quem está ao nosso redor, vamos ocupar espaços e pautar a nossa existência.


[VINHETA DA SÉRIE]


JADE: Neste episódio conhecemos as experiências de aborto de mulheres com deficiência e nos aprofundamos ainda mais na luta por direitos básicos dessas mulheres. No próximo, vamos falar sobre violência obstétrica, políticas públicas e acessibilidade nas maternidades.


ALDENORA: Esperamos você no último episódio desta série que ficará disponível na segunda-feira, dia 27 de junho. Assine nosso feed para receber a notificação de lançamento. Lembramos que as referências utilizadas nos episódios e a transcrição dos roteiros estão no nosso site: www.malamanhadas.com ou na bio das nossas redes sociais @malamanhadas, onde você também encontra o link facilitado para os vídeos em libras, disponíveis no Youtube, no Canal Malamanhadas Podcast.


[VINHETA DA SÉRIE]


ALDENORA: A Série Justiça Reprodutiva faz parte da Campanha Nem Presa, Nem Morta, que luta pela descriminalização do aborto no Brasil, sob o selo do Futuro do Cuidado - justiça reprodutiva em tempos de pandemia e é realizada pelo Malamanhadas Podcast, sob Mentoria da Revista AzMina.


[VINHETA DA SÉRIE]


JADE: Agradecemos a consultoria para conteúdos acessíveis feita por Denise Santos, o trabalho de tradução em libras, de Vitória Ribeiro e as decupagens das entrevistas feitas pela equipe do Ôxe Normalize. Eu sou Jade Araújo, locutora deste podcast, também responsável pela identidade sonora, técnica de audiovisual, montagem e edição dos áudios. A Aldenora Cavalcante é a coordenadora do projeto, locutora e roteirista.


[VINHETA DA SÉRIE]


ALDENORA: A Ananda Omati é coordenadora do projeto, roteirista, e responsável pela identidade sonora, montagem e edição dos áudios. A Jhoária Carneiro é assistente de produção. A equipe de pesquisa é composta por mim, Aldenora Cavalcante e a Ananda Omati. A identidade visual é do Moura Alves. Agradecemos a todas, todos e todes e até a próxima.


[VINHETA DA SÉRIE]


FIM DO EPISÓDIO


REFERÊNCIAS:
















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