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  • Foto do escritorMalamanhadas

Talvez eu seja minha tia-avó

Tenho uma tia-avó que acredita que sou a reencarnação de outra tia-avó que já se foi. Essa que está viva conta que ainda lá em 70 e pouco, ela, a que está morta, já era tudo que eu sou hoje. Esperta, curiosa, corajosa e com um caminhado um tanto feio, quase nada feminino. As outras tias-avós encontram uma semelhança aqui e outra ali, porém atribuem aos laços sanguíneos que sempre foram fortes em nossa família, mas tia Teresa bate o pé: tem certeza absoluta que é reencarnação! E mesmo com todo catolicismo que impera na família, ninguém discute.


Sempre que a família está reunida e eu chego, tia Teresa me cumprimenta duas vezes: uma como sobrinha-neta que sou e outra como irmã que ela piamente acredita que eu também seja. Antes eu ria sem graça, sem saber como reagir, mas com o tempo fui me aproveitando de informações que deixavam escapar e me divertindo incorporando a personagem. Minha tia-avó morta se chamava Neuza, era a mais desbocada e carinhosa das oito irmãs, desafiava os pais, divertia os colegas, era a favorita dos professores. Estudava geografia e morreu aos 26, num acidente de carro.


Nunca tive a importância reduzida como Maria Eduarda e ainda tinha vantagens como Neuzinha, por exemplo: participar, com 11 anos, da roda de conversa das mulheres adultas da família. “Que bom que você está aqui”, tia Teresa dizia olhando no fundo dos meus olhos, com o rosto bem próximo, pra falar diretamente com a alma que acreditava fazer morada mais funda no meu corpo. “É bom estar com todas reunidas, minha irmã!” eu dizia com minha melhor dicção, tentando fazer uma voz adulta. Ela ficava feliz e eu – eu mesma - achava graça.


Cresci podendo falar o que desse na telha. Se eu expressava um ponto de vista totalmente honesto e imparcial, quem não acreditava na reencarnação deixava passar, porque eu era criança e criança é assim mesmo. E quem acreditava, por mais que não concordasse, jamais julgaria ou rebateria a opinião de uma pessoa que foi e deu um jeito de voltar “isso aí é a Neuzinha, não muda nunca, deixa falar”. Eu estava protegida até pela dúvida dos outros, podia falar o que eu bem entendesse e essa liberdade se fortaleceu em mim, me fortaleceu. Ao me assumir para toda a família como lésbica, tia Teresa disse “claro que você é lésbica, meu amor. Não me surpreende. Neuzinha nunca viu vantagem em homem nenhum.”.


Conforme fui amadurecendo e adquirindo um filtro para tudo o que dizer, fazer, pensar e até sentir, ser Neuzinha foi minha válvula de escape. Diferente de tia Tereza que tem orgulho de saber diferenciar quem sou eu de quem é ela, eu adoro confundir. Se a alma de tia Neuza realmente mora em mim eu não sei, mas desde cedo me atribuíram muitas características dela, que eu adoro nutrir. Acredito que cada um de nós tem um destino para o próprio espírito e acredito também que não percorremos essa jornada sozinhos, ela é compartilhada.


Se tia Neuza optou voltar e compartilhar comigo o que sua alma aprendeu, se optou voltar pra essa família e amar essas pessoas todas mais uma vez, eu aprendo duas vezes e amo duas vezes. Nossa alma é ilimitada. Não somos nossos cérebros, nossos corpos, nossas roupas ou nossa casa, mas sim nossos pensamentos, nossos jeitos, o que expressamos e onde escolhemos estar. Se Neuzinha me escolheu pra sediar esse evento que é sua eternidade, fico extremamente feliz. Acredito que juntas compomos um espírito com um mapa infinito de experiências e possibilidades.




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