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  • Foto do escritorMalamanhadas

Escrevivências de cura: eu e Alice Walker

Descansada na massagem pelas mãos de uma mulher negra que fala do marido, de ter que engravidar porque ele quer e outros ecos patriarcais. Como o mundo da estética é heteronormativo! - quantas respiradas não dou. Ler A cor púrpura, da escritora e ativista negra estadonidense Alice Walker, neste cenário, fortalece; faz ir fundo pro passado; compreender e perdoar quem nos gerou, avós, bisavós e, ao mesmo tempo, exigir reparação pelos traumas do racismo, machismo e outras estruturas de poder engendradas à colonização e ao capitalismo.

Sinto ansiedade intensamente. Vuco, vuco, vuco, cabeça cheia de pensamentos, faz isso, faz aquilo. Vai aqui, vai ali, faz isso, faz aquilo. Finalmente deito no chão frio. As cachorras encostam em mim. Poder deitar - e já ter que levantar para pegar lanche feito pelo meu branco que não consegue esperar. É muita coisa de minha responsabilidade e muito mais as que querem jogar em mim. Tough uppara ontem, sem perder a ternura - ou também foda-se. Ainda bem ter uma casa, caderno e caneta. Respiro o ar ameno, graças à chuva. Obrigada, chuva. Pude caminhar de boa de volta pra casa, sem cansar, suar ou ficar morrendo. Tem algum lugar assim sempre pra se morar no Piauí? Não, creio que tudo seja um inferno. A chuva atípica tá respondendo aos tratamentos bizarros desde a colonização featrevoluções industriais. Sinto que tenho muito pra escrever, incômodos, histórias que vão ficando aqui na garganta e que sei que precisam chegar em outras mulheres, inclusive por meio de caras (cartas?) para minha mãe - paro.

Difícil manter o raciocínio com o foco na agenda e celular, em olhar o tempo todo para um e outro entre compromisso e contato - sim - não - sim - não - cortada - áudio - foto - ah! Ah, ainda tenho muito a escrever hoje e por estes dias. A ideia de um diário criativo com Lorena Varão me agrada. O que quero escrever é de outro formato - diário de estranhamentos, incucações, memórias, que possamos voltar e pegar, como caderninhos de escrita. Bom o tempo de desapegar: importante e contínuo. Bom também este tempo. Crescem juntos em mim os sensos de autopreservação e de cuidado do outro/a em mim e fora de. A preguiça parece continuar a aparecer. Nisso A cor púrpura também me pegou. Aliás, sinto como Celie, na mudança de sua escrita, pensamentos, ações e destinatária de sua palavra. Gostaria sim de expandir minha escrita. Gostaria não: VOU! A humanidade que tenho em mim pulsa nas palavras e na vontade de conhecê-las cada vez mais que saem de mim, desde tanta gente. Sinto cura vindo delas e A cor púrpura, que me situa na COR. Ser mulher negra. Algo que não lembro de ter vivido com outros livros. Muitos me fazem conhecer, duvidar, aprender, horrorizar, me acostumar, viajar - isso é diferente. Alguns calejam. Estes dois também. Vão lá no cerne - lá onde não se quer ir em já estando lá; o que não se quer iluminar e se olha, se fala. Lá no sexo, vulnerável, violento e potente. Quantas palavras! Não me basta consumir - ler, ler, ler... ainda que ler sobre mim e me reler, o que escrevo só para mim, tem ajudado minha memória, saúde e gasto de loucuras. Caimbrã no polegar.

Os movimentos Leia Mulheres, com clubes de leituras, atividades para mulheres poetas e escritoras, fez com que nos últimos três anos eu tenha priorizado a leitura de teorias e literaturas escritas por mulheres. As compras, empréstimos, idas à bibliotecas e downloads têm ganhado outros sentidos, como as curas vivenciadas pelas mãos de mulheres que desafiam os silêncios impostos à elas, crianças e adolescentes, lgbts, afrodescendentes e povos tradicionais. Os processos de escolha sobre com que vozes quero conversar passam pelo gênero. A cor púrpura chegou no Kindle numa promoção. Foram meses até começar e em poucos dias terminei a leitura, marcada pela universidade temática, metodológica e de abordagem. Como se todas as teorias que leio estivessem ali sem se dizer e não houvessem mais palavras a ser ditas - impressão apressadamente errada. O livro me deu palavras para espalhar, semear e cultivar no desvelamento de histórias que eu já conhecia, de crianças prometidas em casamento, arranjadas por seus pais a homens mais velhos; de maridos que estupram as esposas e as usam como "se fossem ao banheiro nelas", tratando-as como "depósitos de porra". De crianças, meninos e meninas, estupradas pelos pais, padrastos e homens de confiança de suas famílias, ameaçadas com o silêncio. Nada disso me é estranho e sim ler com palavras estas histórias que nos vão chegando entre fofocas, sussuros, julgamentos e silenciamentos.

Alice Walker vai lá e fala. Em linguagem informal, próxima da oralidade, por meio das cartas que Celie envia primeiramente a Deus e depois a Nettie, sua irmã. Fala com palavras escritas e subtendidas e organiza os parágrafos de forma que a leitura (leitora?) atenta vai sentindo e se envolvendo. A carta espera dois leitores: quem a escreve e a quem se destina. A impressão é que a escritora usou também minhas mãos negras, neta do interior, enquanto leitora, para escrever também. Cheguei ao final do livro com a sensação de que havia vivido aquilo tudo enquanto ainda ansiava pelo que viria nas próximas páginas. O livro é sobre resistência feminina negra; entrelaçamento de experiências e salvamentos; trauma, memória, cura; sobre ir e vir e ter um lugar para onde voltar; o tempo e a iminência do recomeço. É "amefricanidade" na veia; é "pretuguês" na tradução, em tudo que pode ser passado-presente para nós. É um convite à cura.




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