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  • Foto do escritorMalamanhadas

As admiráveis e espantosas histórias que os números contam

Nestes minutos que antecedem a grande final da Copa do Mundo de Futebol Feminino 2019 eu me despeço, já com saudades, falando de números. O balanço começa pela minha tristeza em escrever apenas quatro crônicas. Muitas histórias ficaram por contar, vítimas dos atropelos da vida nesse tempo difícil. Mas, deixemos de lado as lamúrias e vamos ao que os espantosos números do torneio têm a nos dizer.


Fujo das marcas do campo, dos gols, das faltas e dos dribles. Isso seria óbvio demais e mais apropriado ao futebol masculino que nada precisa provar além da qualidade dos jogadores. Concentro-me nos bastidores que é o lugar em que essa copa se transforma em algo grandioso para a vida das mulheres. Imagine você que em seu próprio campo elas entraram em minoria no comando. Lá estavam os homens dirigindo quinze seleções das vinte e quatro participantes. Qualquer semelhança com a vida fora do estádio não é mera coincidência. Eis que as noites que se seguiram nos surpreenderam com suas histórias fantásticas e elas chegaram às oitavas de final, quarenta e quatro jogos depois, comandando cinco entre as oito seleções classificadas. Ou seja, de 37% do grupo inicial passaram a 62,5%. Que salto, hein? Espera! Isso ainda não é tudo. As fases seguintes conduziram duas seleções treinadas por mulheres à grande final. Alcançaram, portanto, os cem por cento no quesito eficiência só para oferecer verossimilhança a situações corriqueiras quando as oportunidades não lhes são negadas.


E aqui, para não parecer guerra de sexo, devo repetir palavras da capitã da seleção norte-americana, Megan Rapinoe: “por mais que amemos todas essas caras de homens, quanto mais mulheres melhor”. Megan se referia à preocupação com outro dado assustador: o reduzido número de jornalistas que as entrevistavam e teciam as narrativas ouvidas pelo mundo. Embora o número geral de repórteres e fotógrafos credenciados pela FIFA para a mídia impressa tenha dobrado em relação ao mundial de 2015, as jornalistas continuaram enfrentando as costumeiras dificuldades para exercer o seu trabalho no esporte, tendo muitas vezes que bancarem suas próprias estadias. A boa notícia é que viram crescer o interesse por suas produções alternativas e inovadoras na cobertura dos jogos. Não resta dúvida de que a perspectiva feminina difere e essa voz ganha importância com direito a fatias generosas de uma audiência que registrou recordes: onze milhões de telespectadores na França, trinta milhões sintonizados no Brasil, quase doze milhões no Reino Unido e sete milhões nos Estados Unidos.


O que fica rolando entre uma bola e outra é o velho questionamento: por que ainda é tão difícil investir em mulheres?

Os números sussurram que na roda viva do mundo capitalista uma coisa puxa a outra, e tudo leva ao que importa: o montante de dinheiro. Se cresce a audiência também cresce o interesse em investir. E a FIFA já anuncia novas medidas para incentivar o desenvolvimento do futebol feminino. Entre elas, dobrar o valor das premiações e chegar aos sessenta milhões de dólares em investimento geral para a copa 2023. É muito? Nada disso se considerarmos que o investimento no futebol masculino, previsto para 2022, supera os quatrocentos milhões de dólares. Ainda estamos muito distantes da equidade ou do que seria justo. Essa é outra longa história que as cifras contam envolvendo na trama os patrocinadores, a publicidade, o retorno de capital, etc. O que fica rolando entre uma bola e outra é o velho questionamento: por que ainda é tão difícil investir em mulheres?


Uma das respostas pode se ancorar, timidamente, em pequenos detalhes como o calendário desrespeitoso que impôs dois outros eventos para o mesmo dia. Porém, isso agora já não esmaga o enredo. Chegamos a esse instante contando inúmeras vitórias. Quando as seleções holandesa e norte-americana entrarem na arena de Lyon, aplaudiremos vinte e duas mulheres que, com muita bravura, mereceram o brilho dos holofotes sobre elas. Viveremos em sobressaltos o embate entre a assertividade de Sarina Wiegman e a experiência de Jill Ellis. Além delas, estarão em nosso campo de observação as árbitras mediando com altivez regras e emoções. Muito além dessas, estarão também outras profissionais narrando admiráveis histórias que serão repetidas por meninas em outros campos ao redor do mundo. Milhares de meninas que já não se intimidarão diante de uma bola sob o domínio de seus pés. O que menos importará, para nós que ainda não chegamos lá, é quem a FIFA sagrará campeã. Como nas boas obras literárias, depois de intensas reviravoltas, o final é aberto a diversas interpretações.


Texto originalmente publicado no site Crônicas da Copa.



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